De quem é o lixo?
Rio de Janeiro tem as usinas nucleares do Brasil, mas é o Estado de Goiás que tem o único depósito definitivo de lixo radioativo
Rio de Janeiro tem as usinas nucleares do Brasil, mas é o Estado de Goiás que tem o único depósito definitivo de lixo radioativo. Entretanto, os goianos não requem receber os rejeitos de Angra I e II. O pior da situação é que uma discussão que deveria ser técnica, foi totalmente politizada
O Rio de Janeiro tem duas usinas nucleares, em Angra dos Reis, e pretende construir uma terceira, na mesma cidade. Entretanto, o estado não dispõem de nenhum depósito para estocar os rejeitos radioativos que são produzidos pelas usinas. Atualmente, os materiais contaminados se acumulam em depósitos provisórios, esperando por uma destinação definitiva.
Diante do quadro, a solução oferecida pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) é transferir o material para o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste (CRCN-CO), em Abadia de Goiás, onde fica o único repositório definitivo de lixo radioativo da América Latina.
Entretanto, as principais autoridades políticas do Estado de Goiás se manifestaram contra a estocagem do material na região, sob a alegação de que a vinda do lixo pode criar mais estígmas para os goianos, que sofrem até hoje por causa do acidente com o Césio 137 que ocorreu na década de 1980.
De um lado, os especialistas do CNEN, que garantem a segurança do processo de transferência e consideram o depósito de Abadia de Goiás o mais adequado para estocar o material. Do outro, o governo de Goiás, que não está disposto a negociar e acionou sua bancada de deputados federais para combater a proposta. Ambos vão se encontrar dia 16 de junho, às 10 horas, numa Audiência Pública marcada para discutir o assunto na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal.
Para a presidenta do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER), Valdelice Teodoro, a exploração política do caso pode prejudicar a escolha da melhor solução. “Quando uma discussão de altíssimo nível técnico é politizada, fica difícil desenvolver um debate racional sobre o assunto. Nem sempre os políticos envolvidos na questão têm conhecimento técnico suficiente sobre o assunto para determinar se é seguro ou perigoso estocar o lixo radioativo. As autoridades deveriam estar mais atentas ao que dizem os especialistas”, opina.
O lado ruim é que a sanha dos políticos para se aproveitar politicamente da situação já gera reflexos na população de Abadia de Goiás, que soma cerca de 7 mil habitantes. Tanto a prefeitura quanto as entidades representativas locais se mostram irredutíveis e não querem discutir o assunto, embora um abaixo assinado contra a proposta tenha recebido a adesão de apenas 500 moradores. A questão é bastante delicada, porque o primeiro quesito para a transferência do lixo radioativo é a aceitação do município. Sem isso, nada feito. “Levando em conta que a CNEN planeja começar a construção da estrutura para armazenamento deste lixo somente a partir de 2018, considero que este assunto chegou aos meios de comunicação de maneira preciptada e, agora, a discussão corre sem fundamento técnico, baseada somente no senso comum e no medo infundado”, afirma Valdelice Teodoro.
Abadia de Goiás é considerada pela CNEN como a melhor opção para estocagem do lixo radioativo por que, além de cumprir com os 50 quesitos de segurança exigidos pelo orgão, o local já conta um laboratório contendo toda a infraestrutura e técnicos especializados para cuidar e monitorar a área que abriga os depósitos. Caso o governo local se mantenha irredutível, a construção de novas estruturas em outra localidade vai ser bem mais cara e dispendiosa. Todavia, o que não falta são candidatos, afinal, quem ficar com o lixo radioativo passa a receber royalties da produção de energia atômica. Três cidades, que são mantidas sob sigilo, já se candidataram para receber o empreendimento.
Sem dúvida, as recentes tragédias nucleares que aconteceram em Fukushima depois de um intenso terremoto promoveram o medo da radiação ionizante pelo mundo afora. Infelizmente, sob diversos aspectos, isso é negativo, pois se tratam de assuntos totalmente diferentes. De acordo com a CNEN, o material radioativo gerado nas usinas de Angra dos Reis, que seriam encaminhados para Goiás, são de baixa e média intensidade, ou seja, não oferecem riscos como o do material radioativo que vazou por acidente no Japão. Além disso, os riscos decorrentes da tecnologia não são justificativa para tantos preconceitos, afinal, toda atividade industrial incorre em riscos.
“A radiação ionizante tem vários níveis e, na maioria dos segmentos em que a tecnologia é utilizada, não oferece riscos de morte. Ao invés de reforçar estereótipos, os governos deveriam se preocupar em informar a população, para que os brasileiros não cultivem medo sem motivo. Em nada a realidade atual tem a ver com o acidente do Césio 137 em Goiânia. São temas totalmente diversos. Enquanto a discussão for superficial e política, caminhamos de mãos dadas com a ignorância”, frisa a presidenta do CONTER.
No CRCN-CO de Abadia de Goiás, já estão enterradas 13,5 mil toneladas de lixo radioativo. São 1,2 mil caixas e 2,9 mil tambores. Todos os rejeitos são oriundos do acidente com o Césio 137 em Goiânia, que vitinou 59 pessoas e deixou outras 1,2 mil pessoas contaminadas. Enquanto isso, nos depósitos provisórios das usinas de Angra I e II, há 580 mil toneladas e quase 8 mil tambores de lixo radioativo, esperando destinação final. “A solução para o problema é técnico, e não político. Não existe esse negócio de que se o lixo foi produzido no Rio de Janeiro não pode vir para Goiás. Somos um único país, uma nação de trabalhadores. Os Estados não são inimigos, eles compõem uma federação, que deve buscar em conjunto a melhor solução para o caso”, pondera Valdelice Teodoro.
Um dos maiores especialistas em blindagem do país, o engenheiro nuclear Artur Cornélio Otto, que já atuou no Programa Nuclear das Forças Armadas, no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e no CRCN-CO, é a favor da estocagem do lixo radioativo em Abadia de Goiás. Para Otto, a população goiana não corre risco ao receber mais rejeitos em seus depósitos. Pelo contrário, o estado tem capacidade e já dispõe de tecnologia para isso.
Em entrevista ao Jornal Opção, Otto garantiu que os repositórios em Abadia são tão seguros que é possível plantar legumes e folhas nas proximidades do Parque Estadual Telma Ortegal, onde ficam os rejeitos, e comê-las. “Não sai nada de radiação. Se for até lá e medir comprovará. Quando eu morava na cidade plantava alface, tomate, tinha uma horta, comia tudo. O risco é zero”, disse.
Em relação ao transporte do Rio de Janeiro para Goiás, também não incorre em risco algum, se todos os cuidados forem tomados. Os rejeitos precisam ser blindados antes do transporte. Assim, caso aconteça algum acidente no percurso, não há risco de vazamento. Vale destacar que outras fontes de contaminação usadas em hospitais, como o cobalto e o radiosity, já são transportadas desta forma e não representam risco algum.
Apesar das vantagens que a energia nuclerar oferece, a tecnologia enfrenta resistência, por causa dos riscos que foram associados a ela. A discussão é válida, principalmente, para derrubar estereótipos e inverter o paradigma. A especulação gerou desinformação e hoje a população brasileira se perde entre as notícias sobre a radioatividade. Tanto que, por preconceito e preocupação de alguns grupos ecológicos, a maior parte do lixo atômico é jogado no mar.
Fonte: Conter