Revista da Morte
Governo do Espírito Santo exonera e MP/ES indicia diretora que determinou a inspeção de grávidas com radiação ionizante no complexo penitenciário de Vila Velha
O secretário de Justiça do Espírito Santo, Sérgio Alves Pereira, exonerou a diretora do complexo penitenciário de Vila Velha. Ela é responsável por baixar uma portaria determinando a inspeção de grávidas em escâneres que emitem altas doses de radiação ionizante na inspeção de segurança do prisão – mesmo após ter sido alertada pelo Conselho Regional de Técnicos em Radiologia da 13ª Região (CRTR/ES) que o procedimento poderia resultar em efeitos biológicos negativos para os bebês.
De acordo com a presidenta do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia, Valdelice Teodoro, este é o primeiro desdobramento válido da denúncia. “Agora, cabe ao Ministério Público investigar e chegar a uma conclusão que preste contas à opinião pública. Se for comprovada a relação entre o uso da radiação e os abortos, os responsáveis devem ser punidos e as mulheres merecem ser indenizadas pelo governo do estado, que é o grande responsável pelo descumprimento das normas fundamentais de segurança para o uso da tecnologia”, opina.
Embora essas medidas tenham sido tomadas, a prática continua a mesma. “Temos informações seguras, dos próprios agentes penitenciários, de que continuam usando os escâneres de inspeção nas mesmas condições, à revelia de todas as opiniões técnicas que foram manifestadas. Temo pelo que pode acontecer”, confessa Marcos Neppel, presidente do CRTR/ES.
A denúncia
De acordo com apurações preliminares do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER), 22 mulheres capixabas sofreram aborto após visitarem seus parentes encarcerados nos presídios de Vila Velha e Viana, no Espírito Santo, onde foram instalados equipamentos de inspeção de segurança (bodyscan) que emitem níveis consideráveis de radiação ionizante.
De acordo com o relato de quatro vítimas, ao visitar seus parentes, as gestantes eram obrigadas pelos agentes penitenciários a passar pelo bodyscan. Como esses trabalhadores não têm conhecimento sobre leitura de imagens radiográficas, ao notar uma ‘massa estranha’ nos abdomes delas, eles desconfiavam que poderiam ter engolido drogas e pediam para que elas passassem novamente, por até cinco, seis vezes consecutivas. Cada passagem, uma dose de radiação acumulada.
Segundo a presidenta do CONTER Valdelice Teodoro, isso não poderia ser feito. “Até o terceiro mês, a gestante não pode ser submetida a exames radiológicos, pois o feto é muito sensível à radiação. Essa exposição pode levar à má formação do bebê ou à morte. Qualquer profissional da nossa área sabe disso”.
“Eu notei que várias mulheres vinham com barriguinha e, pouco tempo depois, voltavam sem nada. Comecei a perguntar e todas me respondiam que tinham perdido o bebê. Comecei a achar aquilo estranho e passei a anotar os dados delas. Agora, já começamos a perceber que tem agentes penitenciários apresentando sintomas também, como fortes dores de cabeça, ânsia de vômito e queda de cabelo”, relata um agente penitenciário que não quis se identificar.
As imagens do bodyscan são tão bem definidas que um médico radiologista conseguiria laudar a radiografia. O agente não consegue ler a imagem, pois não tem formação suficiente para discernir, sequer, entre um feto e o que seria um pacote de cocaína, por exemplo. Não obstante, eles passam cada mulher quatro, cinco, até seis vezes. Cada passagem, uma dose de radiação a mais vai se acumulando naquele organismo. “Não tenho provas de que existe relação entre uma coisa e outra. Mas, tantas mulheres abortando no mesmo sistema? Seria grosseiro dizer que é uma coincidência. O aparelho está em local inadequado, não há proteção radiológica, tanto para os operadores quanto para as pessoas que vão ser revistadas. Os trabalhadores também podem começar a apresentar problemas de saúde”, esclarece Josiel de Oliveira.
O CRTR 13ª Região oficiou a Secretaria de Estado de Justiça, para esclarecer o que se passava e qual deveria ser a conduta a partir dali. “A secretaria foi omissa, demorou dois meses para nos responder. Quando o fez, foi simplesmente para nos desqualificar e dizer que não tínhamos autoridade para fazer aquelas objeções. Eles nos subestimaram”, considera o fiscal do CRTR/ES, Josiel de Oliveira.
As vítimas
Os relatos das vítimas são estarrecedores. “Depois que passei pelo bodyscan, comecei a perder líquido, como se houvesse um pequeno furo na minha bolsa. Em três dias, perdi todo o líquido que tinha para o bebê sobreviver. Os médicos falavam que a maior chance era de infecção. Fiz todos os exames possíveis, não foi constatada nenhuma infecção. O bebê nasceu prematuro, com 24 semanas, e não resistiu, morreu. Registrei e enterrei meu filho ao mesmo tempo. Eu estava tentando engravidar há 3 anos, era meu sonho”, conta SHG, 33 anos de idade. “No dia 5 de abril, eu fiz uma ultrassonografia com um dos melhores especialistas do Espírito Santo. Ele me disse que a gestação estava 100%. Ele usou esse termo: 100%! No dia 11 de abril, eu perdi meu filho dessa forma inexplicável. O que causou aquela ruptura? Ninguém me explica. Até hoje eu choro.”
“Eu falei que estava grávida, mas a agente disse que se eu não tivesse o exame seria obrigada a passar. Ela não aceitou que eu fosse revistada de outra forma. Só de me olhar dava pra ver que eu estava grávida. Até aquele momento minha gravidez estava indo bem. Depois que passei pelo bodyscan três vezes consecutivas, comecei a sentir dor e ter sangramentos. Fui ao hospital e a médica me disse que eu estava abortando. Ela não soube me dizer o motivo”, afirma JNB, 39 anos, que perdeu o bebê na 12ª semana de gestação.
Sem se dar conta da gravidade do assunto, ao longo do primeiro semestre, os veículos de comunicação do Espírito Santo publicaram matérias noticiando a descoberta de gestações durante a revista nos presídios. Até aquele momento, ninguém compreendia a dimensão do problema e no que isso poderia dar. Noticiavam a descoberta de gestações como se fosse algo positivo.
Uma das nossas personagens não perdeu o bebê, pois teve coragem de se recusar. “Eu não passei, sabia que podia fazer mal. De lá para cá, não deixam eu fazer minha visita. Estou há meses sem ver meu namorado. Um dia, eles foram atrás de mim, estavam desconfiados, queriam me obrigar. Eu bati o pé, não passei. Ontem mesmo fiz o ultrassom, está tudo bem com meu filho”, conta a futura mamãe IAL, de apenas 13 anos de idade.
Os equipamentos
Os equipamentos instalados nos presídios de Vila Velha e Viena se chamam BS 16HR-DV, da marca Smiths Heimann. No manual, resta bem claro a área que ele irradia e todos os cuidados preventivos e de manutenção que devem ser tomados. Infelizmente, todas as recomendações são ignoradas pela Secretaria de Justiça do Espírito Santo.
No plano de trabalho sugerido pela Smiths Heimann, também existem uma série de requisitos que deveriam ser cumpridos, como a avaliação radiométrica do local, blindagem, recursos de segurança, assimilação de conceitos básicos de proteção radiológica, entre outros aspectos. Igualmente, todas essas recomendações não foram levadas em conta. Uma completa burla do necessário.
Humilhações
Além de expostas à radiação ionizante de forma amadora, essas mulheres relatam que são sumariamente humilhadas sempre que vão visitar seus parentes. “Era maltrada se me recusasse a passar pelo bodyscan, não deixavam entrar. Eu tinha que me submeter à exigência deles pra não ficar sem minha visita. Eles fazem o que querem, você não pode falar nada. Sou muito humilhada quando vou lá”, destaca JNB, que completa. “Esse filho era muito importante pra mim. Um filhinho agora era o que eu precisava, ficou um vazio. Sei que um filho não substitui outro, mas ia ser uma alegria para nossas vidas”.
“A gente entra em grupos de dez em dez. Por causa de um absorvente, eu vi pessoas serem obrigadas a passar até cinco vezes seguidas. Eu vi uma menina apresentar um Beta HCG, provando que estava grávida. Mesmo assim, ela foi obrigada a passar. Qualquer coisa que você tenta argumentar, eles coagem, “quem está de preto aqui?”, perguntam. É triste, me sinto impotente”, finaliza SHG.
“Os agentes não têm preocupação com a saúde e os direitos das pessoas, são desumanos. Eles assediam moralmente essas mulheres com o subterfúgio do desacato. Li uma reportagem que o estado que comprar mais 30 equipamentos como este. Cada um custa mais de 600 mil. É um grande negócio, que já sabemos onde pode dar”, finaliza o fiscal Josiel de Oliveira.
Posição
O Sistema CONTER/CRTRs não é contra a utilização do bodyscan nos presídios. Pelo contrário, a autarquia entende que o mecanismo é eficaz e pode ajudar a acabar com a revista íntima, em que a mulher tem que se despir de forma humilhante. A instituição apenas entende que os requisitos de segurança devem ser obedecidos e o aparelho, operado por gente competente, que saiba identificar as pessoas que podem ou não ser submetidas àquele tipo de inspeção.
“A mesma tecnologia vai ser utilizada nos aeroportos e estádios da Copa de 2014. Infelizmente, na maioria dos casos, os equipamentos serão instalados sem o cumprimento dos requisitos de segurança. Estatisticamente, podemos afirmar que problemas como esse vão se repetir. Lamentavelmente, as vítimas sequer entenderão o que está acontecendo. O panorama não é animador, nossos governos não observam suas próprias leis”, finaliza a presidenta do CONTER Valdelice Teodoro.
Fonte: http://www.conter.gov.br/?pagina=noticias&id=528